Acredito que o Ciclismo, a História e a Natureza podem ser faces da mesma moeda. Uma grande atração em meio ao Agreste Potiguar, sem dúvida, é o famoso Castelo Zé dos Montes, construído por volta de 1984. Pouco antes da pandemia resolvemos (grupo de 5 ciclistas) conhecer o Castelo de bicicleta no “bate e volta”. Foram 235km percorridos de Bike, durante quase 18 horas, e passando por, pelo menos, 10 cidades (Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, Bom Jesus, Serra Caiada, Tangará, Sítio Novo, Lagoa de Velhos, São Paulo do Potengi e São Pedro). Uma aventura e algumas situações inusitadas. Entre elas, vale destacar que, alguns atalhos podem não ter iluminação à noite, ou ainda, cachorros podem te perseguir em meio a escuridão, ao passar pelos sítios e fazendas da região. Acredite, pior que levar uma carreira dos cachorros, é levar essa carreira no escuro (rs). Agora parece engraçado, mas na hora não foi nem um pouco.

 

SAINDO DE EXTREMOZ

Finalmente conseguimos tirar do papel o projeto de uma pequena aventura que há tempo planejávamos, e que agora se efetivava. Escolhemos ir numa segunda-feira, dia 13 de janeiro, pois a data funcionava para o grupo. Compartilho, aqui, breve resumo dessa experiência. Itens de segurança, 3 câmaras de ar reserva, pneus devidamente calibrados, alguns trocados no bolso para o lanche/almoço e vamos embora. Saímos de Extremoz por volta de 3h30 da matina. Vale salientar que era a minha primeira viagem de Bike acima dos 200km. Segue o desafio. Olhando no Google Maps é sempre mais perto e mais rápido que na vida real. As estimativas nunca batem, pelo menos comigo. O fato de não pedalar muito rápido pode explicar em parte o “problema”.

O ar fresco da lagoa de Extremoz avisava ao corpo que a “expedição” havia começado. Depois de alguns meses planejando e de alguns cancelamentos, finalmente estávamos a caminho do famoso Castelo Zé dos Montes, localizado no alto da Serra da Tapuia. A serra tem 400 metros de altitude e está situada no município de Sítio Novo, distante cerca de 240 km (ida e volta) da terra do grude. Após encontrar com o colega de pedal, Nivaldo, pelo centro da cidade, saímos em direção ao “Gancho de Igapó” ao encontro de mais dois colegas, “China” e Júnior (Italiano), ambos da Zona Norte. A empolgação típica do início das pedalas já estava presente no rosto de todos.  Assim, seguimos para encontrar com o último parceiro, Joel, de Macaíba. O sol já estava querendo dar o ar de sua graça quando todos nos encontramos em Macaíba, terra do museu Solar Ferreiro Torto – importante marco histórico do nosso estado. Tombado pela fundação José Augusto, o Solar remonta ao ano de 1614 e foi, de acordo com relatos históricos, o segundo Engenho de Cana de Açúcar da capitania do Rio Grande. Fica próximo ao centro de Macaíba e vale muito a pena a visita com toda a família. Entrada é gratuita.

*O imponente Solar Ferreiro Torto, em Macaíba (Foto: Raphael Luiz/Fotec)

Grupo reunido, pela frente ainda tínhamos cerca de 200km e um sol que podia chegar a 35º com sensação térmica de mais de 40º. Saímos pela Reta Tabajara, que para variar estava em obras, e seguimos pela BR-226, que por sinal tem um bom acostamento – permitindo uma pedalada em segurança. Próxima parada, ainda antes das 7h, foi em um local chamado, Ponto do Café em Cajazeiras – e tome tapioca com café, pois o almoço ainda ia demorar, apenas, em cima da Serra. Já tínhamos entrado em contato com o administrador do Castelo, Joseildo, filho do senhor Zé dos Montes, que nos aguardava. José Antônio Barreto (Zé dos Montes) infelizmente viria a falecer, aos 88 anos, 6 meses após a nossa visita. A previsão era chegarmos no Castelo antes das 12h (meio dia). Percebemos que já estávamos atrasando quando, por volta das 11h, ainda nem havíamos chegado em Tangará (última cidade antes de Sítio Novo). Verdade que, antes, entre Bom Jesus e Serra Caída tivemos alguns pneus furados, o que acabou atrasando um pouco.

 

BOM JESUS

Conhecido antigamente pelo nome de “Panelas” (em função da produção de panelas de barro) a cidade de Bom Jesus, segundo consta na monografia “Bom Jesus: origem e emancipação” escrita por, Nóbrega, em 2003, a cidade teria mudado de nome por interferência de Frei Damião durante uma de suas missões no município. Na ocasião, teria dito que o nome “Panelas” não seria adequado, pois as panelas acabam em cacos. Recebendo, assim, em 1936 o nome de Bom Jesus. O Grupo seguia animado.

 

SERRA CAÍADA

Aproveitamos para dar uma descansada em Serra Caída e conversar com o pessoal que vendia água de coco na entrada da cidade, momento para uma respirada. Era possível sentir a brisa aconchegante desse local que vem se destacando cada vez mais em nosso estado, além do valor histórico, pelo turismo de aventura, principalmente a escalada que vem atraindo cada vez mais aventureiros do país inteiro. Vale notar que, Serra Caída, está entre os 50 melhores locais para a prática da escalada em todo o Brasil, segundo o livro “50 Vias Clássicas do Brasil” dos autores Cintia e Flávio Daflon lançado em 2017. Nosso estado é realmente privilegiado. Sem falar dos aspectos históricos, em artigo cientifico publicado pelos autores, Virgína Araújo e Ademir Costa em 2015, afirmam que a formação geológica da cidade faz parte das mais antigas do mundo. Ainda de acordo com a publicação, O geólogo Elton Dantas, realizou datação que coloca o monumento natural de Serra Caiada entre as reminiscências mais antigas da era que antecedeu a vida no planeta, perdendo em idade apenas para as rochas da África, dos rincões da Groelândia, do Canadá e da Austrália. O artigo pode ser conferido na íntegra pelo link; file:///C:/Users/usuario/Desktop/6488-Texto%20do%20artigo-18546-1-10-20150527.pdf

*Parada para respirar em Serra Caiada: Leandro, China, Júnior, Nivaldo e Joel (da esquerda para a direita).

TANGARÁ

Após essa respirada, e já se aproximando dos primeiros 100km, chegamos em Tangará. O sol estava castigando, sensação térmica de mais de 40 graus e as placas mostravam que ainda faltava em torno de 25km a serem percorridos, sendo a maior parte, subidas.  Será que alguém aproveitou a passagem para provar o famoso pastel de Tangará? Vou nem comentar (rs). Tangará se destacou no estado pela forte produção de algodão ao longo do século XX. A cidade também já foi cenário do documentário “Theodorico, o imperador do sertão”, dirigido por Eduardo Coutinho e apresentado no programa Globo Repórter em 1978. Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=e9O0jn84Asw&t=12s

 

SÍTIO NOVO

Já estávamos pedalando por quase 12 horas e a temperatura aumentava muito. Agora, já em direção a Sítio Novo, cruzamos a barreira dos primeiros 100km (“só” faltava mais 135km até voltar para Extremoz). O clima seco e a vegetação típica do Sertão – a caatinga – se destacava na paisagem. O clima Tropical Semiárido, marcado pela escassez e pela irregularidade de chuvas mostrava toda sua hostilidade. Tínhamos ficado um pouco para trás do grupo (Eu e Nivaldo), os demais estavam um pouco adiantados. Acho que foi nessa hora que paramos e encostamos as bicicletas na primeira placa que avisava a distância restante. A água já estava chegando no final. Foram mais de 20km de calor extremo, ladeiras, pouco vento, e nem uma alma viva pelo caminho. Não lembro de termos visto um único carro na pista nesse trecho. Encontramos os colegas mais a frente tentando fotografar um Avestruz, sem sucesso.

*Nunca acredite nessas placas. Acho que ainda pedalamos mais de 1 hora para chegar na Serra da Tapuia. Foto: Leandro Soares

SERRA DA TAPUIA

Com quase 400 metros de altitude a Serra da Tapuia está situada na microrregião da Borborema potiguar e fica a uma distância de quase 10km do cento de Sítio Novo. A subida da Serra é realmente praticamente impossível de subir pedalando em função da sua forte inclinação. Aqui entre nós, quase que eu não conseguia subir nem empurrando. A bicicleta estava pesando uns “50 quilos” naquela subida de mais de 8km. Quando passou uma pequena caminhonete, subindo a serra, faltou pouco para pedir uma carona, muito pouco mesmo. Mas seguimos em frente. Aquela subida demorou uma eternidade. A cada curva, tinha outra ladeira ainda maior. Teve uma hora que coloquei a bike de lado, me sentei na parte alta da serra e tive um momento de profundo contato com a natureza. Contemplar aquela paisagem deu todo o significado a viagem e me ajudou a concluir a subida. Valeu demais pela foto, Nivaldo.

*Àquela hora que a natureza lhe recompensa todo o esforço. A vista do topo da Serra da tapuia. Foto: Nivaldo Silva

Chegamos no Castelo pouco depois das 13h. O administrador já nos aguardava, almoçamos, conversamos um pouco sobre a história do Castelo e as motivações para sua construção.  Tudo funcionou bem. Mas acredito que o atendimento poderia melhorar para aumentar o potencial turístico do local. Dentro do castelo é possível passar por vários corredores e labirintos, o local tem mais de 100 compartimentos, muitos morcegos e algumas salas escuras. A construção estaria relacionada a uma visão religiosa. Várias matérias e reportagens, até mesmo em nível nacional, já foram feitas sobre a história do Castelo. É possível saber mais nessa reportagem feita pela TV Assembleia: https://www.youtube.com/watch?v=h9yCDDo02NM

Descansamos um pouco e subimos novamente nas bikes.

*Grupo reunido no Castelo Zé dos Montes no pico da Serra da Tapuia. – Foto: Joseildo Gomes (Administrador do Castelo)
*Momento da chegada ao Castelo.

SÃO PAULO DO POTENGI

Iniciando o retorno para Extremoz, por alguma razão o grupo resolveu não retornar mais pela BR-226, e sim, por São Paulo do Potengi. Lembro que alguém sugeriu essa rota por ser um pouco mais perto, coisa de 5km, talvez. Há pouco havíamos passado por Lagoa de Velhos e seguíamos em direção a próxima cidade, São Paulo do Potengi. Procurávamos aproveitar ao máximo os últimos raios de sol. O problema é que não tínhamos considerado a falta de iluminação na RN-203. Quando passamos por São Paulo do Potengi o sol já estava se pondo. Em fração de segundos a noite chegou e, era uma penumbra que não conseguíamos enxergar um ao outro. Todos havíamos levado iluminação noturna, mas, as pilhas não aguentaram muito. Lembro que a minha lanterna foi a primeira a falhar e rapidamente apagou. Júnior, tinha uma luz azul muito potente, mas também não durou muito. Nivaldo também não deu muita sorte. A nossa salvação foi o parceiro Joel que tinha uma lanterna muito forte e dava para iluminar, razoavelmente, bem. Assim, o grupo todo procurava se guiar pela luz dele. Mas não era fácil. Quem ficava mais atrás, não via quase nada. Era um breu danado.

Pelo menos, para min, esse foi o trecho mais dramático. A pista tinha muitas descidas e precisava descer em uma velocidade razoável, sem ver nada, absolutamente, nada. O momento mais “tenso” e, agora, “engraçado”, foi quando escutamos uns latidos distante, devia vir de algum sitio ou fazenda por perto, os latidos ficaram cada vez mais perto e de repente alguém grita – “senti um cachorro aqui na minha perna! ” Eu não sei quem gritou, mas sei que todos pedalamos o mais rápido que podemos. Por sorte foi só o susto, e que susto.

SÃO PEDRO

Já passavam das 19 horas quando, finalmente, chegamos a próxima cidade. Em São Pedro fizemos um lanche rápido e seguimos viagem. Lembro que, inicialmente, imaginava estar em casa por volta das 20h ou 21h. Mas o horário do retorno ficava cada vez mais distante. Àquela altura, já tínhamos pedalado em torno de 170km. Faltava, ainda, mais uns 70km até Extremoz. Não tínhamos tempo a perder. Voltamos a pedalar com força total (ou, pelo menos, a força que ainda tinha).

De volta a BR-226 seguimos em direção a Macaíba e lá nos despedimos do amigo Joel que havia, literalmente, iluminado nosso caminho. Passavam das 21h e o desejo era um só, chegar em casa, tomar um banho e dormir. Seguimos. Lembro de ter pensado, passando por São Gonçalo, as relações possíveis entre a história dos Mártires de Uruaçu e as Ruinas da Igreja de Extremoz. Acho que pensar nessas possibilidades históricas ajuda a ocupar a cabeça e esquecer um pouco o cansaço físico. Estávamos passando dos 200km de pedalada e, Extremoz, ficava cada vez mais longe. Chegamos no Nordestão do Igapó por volta das 22h e nos despedimos dos colegas China e Júnior, que foram para a Zona Norte.

Agora, apenas 12km nos separava de casa. Nunca pensei que do Nordestão (Igapó) para Extremoz fosse tão longe. Depois de mais de 235km de pedal, em mais de 18 horas de duração e passando por 10 cidades, enfim, de vota ao lar. Me despedi do parceiro Nivaldo na entrada de Jardins de Extremoz e segui em segurança para casa. Não tenho palavras para descrever a sensação dessa experiência única. Mas resolvi compartilhar com vocês e talvez servir de inspiração e não repetir alguns erros. Penso que, essas experiências, únicas e intensas é que dão sentido a nossa vida, bem materiais e vaidades são efêmeros. Abaixo um pequeno vídeo que conseguimos recuperar do momento da chegada ao Castelo.

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Sobre o autor

By Leandro Soares

Professor da Rede Estadual de Educação. Graduado em História e Filosofia pela UFRN. Mestrado em Filosofia Política, Pós-Graduado em Ensino de Filosofia e Literatura pelo IFRN.