20 de julho de 1934. O sacerdote Cícero Batista Romão encerrava sua missão em Juazeiro do Norte, no Ceará, onde não apenas se dedicou à vida religiosa como, em 1911, foi o primeiro prefeito da recente cidade.

Anos antes, tornou-se ‘santo popular’ no Nordeste do Brasil quando uma hóstia se transformou em sangue na comunhão ministrada à beata Maria de Araújo, em 1889. Assim contam e, desde então, o território do milagre acolhe romeiros vindos de todos os cantos.

É sobre o Padre Cícero (1844—1934), o Padim Ciço, que a série Grandes Personalidades da História do Nordeste reflete, nesta quinta-feira (16). Para o debate, a Fundação Joaquim Nabuco recebe o escritor Gilmar de Carvalho e o jornalista Xico Sá, cearenses. O evento é transmitido no canal oficial da instituição no YouTube.

“Se Plutarco vivesse no Brasil do fim do século 19 às primeiras décadas do século 20, certamente incluiria o Padre Cícero numa versão brasileira das Vidas, que trazem indivíduos quase com status de ‘mito’, palavra muito usada e quase nunca bem compreendida”, diz Mario Helio, gestor da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte da Fundação Joaquim Nabuco.

“O Padre Cícero tem o carisma do herói, tão importante para os antigos, e não menos para os modernos. Foi o herói epônimo de Juazeiro do Norte. E poderia batizar a cidade, tal a importância que tem. Ele forma com Ibiapina e Conselheiro uma trinca de personagens transcendentes do Ceará, cuja ação exemplar repercutiu e reverberou no Brasil e no exterior”, acrescenta o diretor.

Natural do município do Crato, ainda no Sertão do Cariri, a 12 km da cidade que o tornou imortal, o Padim converteu um número incontável de pessoas em peregrinos, fosse pela popularização da máxima beneditina ou pelos tantos relatos de milagres.

Foi assim com outro cearense do Crato, o jornalista, colunista do periódico El País e escritor Xico Sá, que conduz a palestra ‘A política da fé e a fé na política, ontem e hoje’.

“Fui também um devoto radical, quase um fundamentalista, a ponto de envolver toda a minha família no pagamento de promessas. Como a mais perversa de todos: subir de joelhos os degraus do horto (local da estátua de 27 metros de altura do Padre Cícero, em Juazeiro) com meus cinco irmãos. O mais novo tinha apenas 6 anos. Eu tinha 12”, conta o jornalista.

“Todos os caminhos do Nordeste levam ao santo popular de Juazeiro. Do tempo de Lampião — quando o rei do cangaço foi pedir a bênção — até hoje, quando a cidade passou a ser rota obrigatória de qualquer candidato à Presidência que deseja dialogar com os nordestinos de uma maneira mais abrangente. Talvez esteja aí o grande legado”, observa Xico, para quem o sacerdote é figura principal no Nordeste ao se tratar de política e fé.

Além de primeiro prefeito do lugar tido como ‘terra do Padim Ciço’, o líder foi também vice-governador do Ceará.

“Padre Cícero é personagem influente tanto entre os ‘coronéis’, com quem costurou pactos políticos, como entre lideranças populares, caso do Beato José Lourenço, que funda a comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato, destino salvação de flagelados das secas de todos os estados da região.”

Impacto cultural do Padim
O professor e pesquisador Gilmar de Carvalho reflete sobre o homem ‘fragilizado’. Em uma investigação repleta de controvérsias das ações promovidas pelo padre, o religioso foi afastado e os milagres declarados falsos.

“Quero centrar minha fala no vigário que foi afastado das ordens eclesiásticas, que se manteve fiel à Igreja e continuou tranquilamente na sua casa, onde todas as tardes ia para sua janela receber os romeiros. Esse menos mito e mais homem que me interessa. Um Padre Cícero fragilizado, mas forte na sua disposição de não provocar uma cisma, de não brigar com a Igreja e que, ao abençoar os romeiros, conversava com eles”, adianta Gilmar, que apresentará um panorama do legado sociocultural de Cícero Romão.

Biógrafo de Patativa do Assaré e autor de mais de 50 livros, como Madeira Matriz (Prêmio Sílvio Romero de 1998) e Mestres santeiros: retábulos do Ceará (2004), o pesquisador assume a palestra ‘Padre Cícero e a cultura de Juazeiro do Norte’.

“As pessoas pediam autorização ao padre para morar na cidade. Assim vieram para cá o escultor pernambucano Mestre Noza e o poeta paraibano João Quinto Sobrinho. Em ambos os casos foi Padre Cícero quem definiu suas profissões. Era comum essa interferência na vida, de pedir autorização pra casar, comprar uma casa, viajar. O Padre Cícero é uma espécie de tutor destes romeiros”, revela o estudioso. Vindos de tantos estados, os romeiros trouxeram não apenas um aumento populacional e de renda, como diversidade cultural para o Sertão do Cariri.

Gilmar de Carvalho aponta, também, a influência de Cícero nos empreendimentos tão comuns à cidade, do artesanato, às hospedagens nos ‘ranchos’ e as costumeiras barracas de comidas e bebidas nas calçadas das casas.

“Ele adaptou para linguagem popular a máxima beneditina de trabalho e oração e dizia que cada casa tinha de ter um altar e ser oficina. Juazeiro passou a ser a cidade dos pequenos empreendimentos. As romarias continuam acontecendo, as pessoas continuam vindo. Teremos Juazeiro numa importância tão grande quanto Caruaru, Campina Grande, Mossoró, Imperatriz, Picos, Petrolina, Juazeiro da Bahia. Juazeiro do Norte é uma cidade importante, pulsante e muito viva. Ela deve isso e é grata ao Padre Cícero, que está presente no cotidiano das pessoas de todas as maneiras”, conclui.

Sobre o autor

By Redator